sábado, 15 de outubro de 2011

Amargar (pt. 3)

Leia as partes 1 e 2


          Uma luz forte ofusca-me a visão, ouço ao longe o som de sinos, cada vez mais próximos de mim, a intensidade da luz também aumenta, vejo vultos a flutuar na minha frente, vultos que regozijam, conversam em uma língua estranha, não consigo entender o que dizem, não sei o que querem de mim, mas estão cada vez mais próximos e mais próximos.

          Sinto que, talvez, eu tenha de fato deixado aquele mundo no qual infligi tanto sofrimento, talvez esse seja o céu, e esses vultos em meio a claridade sejam anjos, mas porque eu nos céus, porque o Senhor me agraciaria com a eternidade junto a ele, depois de tudo que eu fiz, depois de todas as desgraças que causei. Não mereço a salvação, não sou digno de viver entre os puros, manchado como estou de tanto pecado.

          Os sinos continuam a tocar, mas seu som parece aos poucos mudar de entonação, sinto que minha face formiga e agora percebo que meu corpo não me responde, a luz continua intensa a me cegar a visão, e os vultos continuam ali, tão próximos. Que devaneio é esse que minha mente me prega. Esse não pode ser o céu, e tão pouco o inferno, a bem da verdade, ainda estou em meu inferno pessoal.

          As vozes antes ininteligíveis agora começam a se distinguir, ouço grunhidos, os sons parecem se tornar cada vez mais audíveis e inteligíveis. Não eram anjos, mas ainda não consigo distinguir suas silhuetas, ainda vejo apenas vultos, ouço ruídos e uma voz “central na escuta, encontramos ele, inconsciente”. Aos poucos sinto que meu corpo e minha alma vão retornando a mim, novamente sinto dor, fome, frio, não, eu não estou no céu, continuo onde eu sempre estive, a espera do meu fim, e agora, parece que ele me encontrou.

          Aos poucos vou conseguindo enfrentar a luz que me cega, os vultos se tornam mais humanos, ouço uma voz suave e feminina a dizer “ele está recobrando a consciência, rápido, ajudem”, logo dois outros vultos se juntam a ela, perto de mim, um agarra-me pelo braço e tenta lançar meu corpo para o alto, sem sucesso, pois não tenho forças para manter-me em pé.

          Sinto que me colocam sentado, meu corpo parece recobrar um pouco de sua força, tento esquivar-me do contato, mas minha reação, meio que instantânea, não é tida com bons olhos pelos dois recém chegados. Um deles repele meus movimentos, aquelas parecem ser as últimas forças que me restavam, sinto que algo frio é posto sobre meus pulsos, sinto como se minha pele rompesse, não consigo mais movimentar meus braços, por mais que eu tente e lute por isso, caio junto a grama, o rosto colado na relva, sinto o aroma e o sabor do verde, desmaio, desfaleço, queria estar morto agora e tudo se apaga novamente.


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